Oferenda

     O amor bateu-lhe à porta para lhe vender doçuras. A dona abriu. Mas que belezinha de amor! Pensou. Belezinha mesmo: pequeno, o olhar interessado que os pequenos têm, e os lábios mais finos, ternura, ternura antiga, astuta, travessa, travessura. E a caixa de doces bem aberta - escancarada - bem à frente para que a dona soubesse já de antemão sobre tudo o que podia vir a ter do amor. Sonho. Confete. Beijinho. Tudo doce.
     A dona sorriu ao amor - que graça! Examinou-o com cuidado, a ele e às doçuras da caixa, até que se resolveu pelo sonho - mesmo o amor tendo tentado fortemente lhe persuadir ao beijinho, o sonho açucarado lhe parecia bom. Mas então abriu a carteira de dinheiro e a expressão de seu rosto murchou. Suspirou longo: Ai que pena! Agradeceu e desculpou-se, com um sorriso mole e bobo, muito bobo - porque os doces que o amor vendia eram baratos, bem baratinhos, e a dona, que não tinha trocado, não lhes pôde comprar. Bom que emagrece! Trancou a porta com o trinco e pensou em fazer abdominais.

( Juliana Gama )

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Borboletas



     Ela vivia bem, de rosas claras, verdes-limão, aquele dia a dia calmo - uma mansidão de dia a dia; mansidão dela. Suas rosas. Seus limões. Andando...
     Hoje a borboleta pousou-lhe à janela. Bom dia, bom dia, bom dia - sorriso ia, se interessava demais - bom dia, das asas bonitas. Bom dia e os cílios piscarelantes. Bom dia através do vidro fino, fininho. Bom dia! Rosas claras. Bom dia! Verdes-limão.
     Hoje a borboleta voou. Ela piscarelou e sorriu: ela volta! Voltou. Pousou-lhe à janela. E pousa sempre. E é sempre um dia bom - bom de bondade. É delicada. É pouca. É frágil. Que encantozinho arrebitado, o da vida!

( Juliana Gama )

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Havia dois pés viciados.

   Eram brancos e lisos, as unhas encobertas por um impermeável transparente, o peito magro, dedos arredondados.
    Dois pés viciados, viciados.
    Na sua rota comum.
    No caminho simples.

     Eles andavam - com os olhos fechados - andavam por lá - para lá, onde os destinos nos querem levar: a maré é só vício. Os dois pés marchavam feito soldado que marcha porque tem que marchar, sem pensar muito, sem saber do porquê.
     E andavam juntinhos, os dois: harmonia. Tinham já o seu ritmo certo, suas vírgulas.
      Os que já foram pisados.
      Já foram beijados.
      Já ficaram de molho.
      Já chutaram - já fizeram gol; dou vivas!
      Que agora eles andam.
      Só andam.
      Seguem, levam seu sujeito - passos e mais passos automáticos, na rota comum, no caminho marcado, no vício! O vício que é seguir em frente sem saber de nada mais.
      É fácil.
      Foi fácil.
      Até que o esquerdo desconfiou.
    Um pontada do impermeável se descascou do dedão, e vixe! Que surpresa! O esquerdo abriu os olhos.
    Abriu os olhos e maravilhou-se: tantos outros caminhos que havia! Tanta rota diferente, tanto céu, tanto encanto além do vício! Mas toda inovação dói: o direito não gostou da invenção de moda do esquerdo. Chutou-lhe.
      O sujeito caiu no chão.


( Juliana Gama )

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Posse

Ela tem um segredo; olha desconfiada para os lados. Um segredo, sim - ela tem.
Um segredo morno. Febril.
     Um que percorre a vida num segundo apenas, a pitada de canela do chá, o sal, o cavalo alado - é corcel! Corcel de vento que vem e que vai; ela o tem.
     E tem com o peso que os cavalos têm - os bons cavalos - a força arrasadora mas as asas - as asas mudam tudo: calafrios. É a febre... é que tem asas de espuma, o peso contradito, que corre e que voa. E ela o pega em gargalhadas falsas.
      Pega-o e guarda-o bem, mas sem exageros porque segurança demais enjoa muito fácil - ela que o diga. Ela, que por não querer enjoar leva o seu segredo num perto-não-tão-perto, deixando os sinais de dúvida - inseguranças disfarçadas - percorrerem-no como adrenalina no sangue, ao mesmo tempo em que o abraça, os dedos compridos e frágeis afundados nas pontas do segredo, nas extremidades, o meio comprimido contra o peito, firme, forte, extrema.
      Que extremista que é! Ela - vive até o fim, morre-se a cada instante, morre-se mas se agarra ao que lhe é próprio - o segredo - tem-no e guarda-o, sentimento de posse. Tem como se tivesse inventado, ela mesma, o seu viés alado de contradição.

( Juliana Gama )

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Dizeres

Entre os homens de terno, havia um rapaz. Sempre houve. E se não trato dele com a mesma ternura com que trato das minhas meninas, é por questão de hábito, nada mais. Este rapaz não costumava usar ternos àquela altura.

Há quem diga que as meninas são mais confusas, que complicam mais as coisas. Bem que podia ser, mas não importa; no fim, nada faz diferença ao ser dito: desde que se trata de pessoas, as coisas são como são. Somos as exceções das regras.

Aqui está que era simplesmente um rapaz, pouco importando seu grau de confusão; o "rapaz" já diz tudo. Diz da viçosidade da pele dele. Diz da sua aparência consideravelmente saudável. Da pouca experiência já adquirida pelo tempo - afinal, ele é só um rapaz. E desde que citei as meninas, a confusão das meninas, e desde que neguei a regra às pessoas, bem poderia-se dizê-lo confuso. Também, própria às poucas idades que é a confusão, este traço já poderia ter sido dito pelo nome rapaz, ao lado da pele nova e da aparência saudável. Em todo caso, a ideia reforça-se na citação das meninas.

E, bem lembrado, mencionei ainda outro pontinho que grita. A questão dos ternos, outra pincelada ao vosso quadro. Pelos céus que ele não usa os ternos - e sim, deixo em aberto meu sentido, "figurado" (e entre as aspas porque sou dos que pregam que não há outra forma de sentido senão esta). Fosse como fosse, o não usar dos tais ternos deixa espaço para outro dizer: o de que, mais que o rapaz, mais que a confusão, há a diferença. O destaque em relação aos outros - aos homens. E vem a voz da inocência perguntar, não estaria esta questão já agregada à citação das meninas? É, bem que podia, e abro-me num sorriso malicioso de narrador. Mas já me acabei com o rapaz. Por agora, estou apenas a dizer as coisas.

E qual sentido? Sentido... Qual a moral? Mudar. Ou distanciar-se, como preferir quem lê. Das meninas pequenas ao rapaz sem ternos. O próximo passo é escrever dos não-confusos. Se bem que este tipo de gente...

( Juliana Gama )

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Espelho

O fim se aproximava, sorrateiro, aproximava-se sem que se pudesse percebê-lo. De visível, só a sua dúvida. A grande incerteza do fim, com seus anseios vazios, com a sua amarga calmaria. Amarga promessa de um fim que se aproxima.

- Mas que é que se pode perder quando não se tem nada? – ela pergunta, a cabeça queimando por respostas. – Não se perde o que não se tem – e mesmo assim ela temia o fim.

O frio salão funciona como um espelho para ela. Vê formar-se na tua mente uma sala ampla, uma bem refinada, dos anjos esculpidos nas paredes, dos vidros negros nas janelas, e uma menina, uma solitária menina que repousa em seu centro.

- Não posso saber – ela diz. – Não há nitidez no meu pensamento.

O salão responde num suspiro, o ar que sai levando consigo uma parte da luz.

- Pois que vejo um caminho – ela continua –, um pelo qual eu deveria seguir. Mas ele é tão, tão incerto… Não sei se quero segui-lo.

E o salão, amargo, se rebaixa em decepção.

- Mas que posso fazer? – ela pergunta. – Se me arrisco nesta estrada tão incerta, se não me arrisco, se o mais improvável dos fins é o que espero!

Mas o salão não responde. Apenas se recolhe, envergonhado pela ingenuidade da voz que ela tem. Expectativas, menina, não são leis.

- Que é que se pode perder quando não se tem nada? – ela repete. – Se me arrisco por aí, na melhor das sortes terei algo a perder quando o fim chegar.

Vai ver é mais seguro ficar por aqui. Vai ver…

E finalmente o salão se encerra, fechando-se, então, nos receios da menina. Via-se uma lágrima nos anjos das paredes, enquanto os passos daquele final incerto começavam a badalar na escuridão que havia lá fora, do outro lado das janelas escuras.

( Juliana Gama )

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