Havia dois pés viciados.

   Eram brancos e lisos, as unhas encobertas por um impermeável transparente, o peito magro, dedos arredondados.
    Dois pés viciados, viciados.
    Na sua rota comum.
    No caminho simples.

     Eles andavam - com os olhos fechados - andavam por lá - para lá, onde os destinos nos querem levar: a maré é só vício. Os dois pés marchavam feito soldado que marcha porque tem que marchar, sem pensar muito, sem saber do porquê.
     E andavam juntinhos, os dois: harmonia. Tinham já o seu ritmo certo, suas vírgulas.
      Os que já foram pisados.
      Já foram beijados.
      Já ficaram de molho.
      Já chutaram - já fizeram gol; dou vivas!
      Que agora eles andam.
      Só andam.
      Seguem, levam seu sujeito - passos e mais passos automáticos, na rota comum, no caminho marcado, no vício! O vício que é seguir em frente sem saber de nada mais.
      É fácil.
      Foi fácil.
      Até que o esquerdo desconfiou.
    Um pontada do impermeável se descascou do dedão, e vixe! Que surpresa! O esquerdo abriu os olhos.
    Abriu os olhos e maravilhou-se: tantos outros caminhos que havia! Tanta rota diferente, tanto céu, tanto encanto além do vício! Mas toda inovação dói: o direito não gostou da invenção de moda do esquerdo. Chutou-lhe.
      O sujeito caiu no chão.


( Juliana Gama )

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Posse

Ela tem um segredo; olha desconfiada para os lados. Um segredo, sim - ela tem.
Um segredo morno. Febril.
     Um que percorre a vida num segundo apenas, a pitada de canela do chá, o sal, o cavalo alado - é corcel! Corcel de vento que vem e que vai; ela o tem.
     E tem com o peso que os cavalos têm - os bons cavalos - a força arrasadora mas as asas - as asas mudam tudo: calafrios. É a febre... é que tem asas de espuma, o peso contradito, que corre e que voa. E ela o pega em gargalhadas falsas.
      Pega-o e guarda-o bem, mas sem exageros porque segurança demais enjoa muito fácil - ela que o diga. Ela, que por não querer enjoar leva o seu segredo num perto-não-tão-perto, deixando os sinais de dúvida - inseguranças disfarçadas - percorrerem-no como adrenalina no sangue, ao mesmo tempo em que o abraça, os dedos compridos e frágeis afundados nas pontas do segredo, nas extremidades, o meio comprimido contra o peito, firme, forte, extrema.
      Que extremista que é! Ela - vive até o fim, morre-se a cada instante, morre-se mas se agarra ao que lhe é próprio - o segredo - tem-no e guarda-o, sentimento de posse. Tem como se tivesse inventado, ela mesma, o seu viés alado de contradição.

( Juliana Gama )

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