Dizeres

Entre os homens de terno, havia um rapaz. Sempre houve. E se não trato dele com a mesma ternura com que trato das minhas meninas, é por questão de hábito, nada mais. Este rapaz não costumava usar ternos àquela altura.

Há quem diga que as meninas são mais confusas, que complicam mais as coisas. Bem que podia ser, mas não importa; no fim, nada faz diferença ao ser dito: desde que se trata de pessoas, as coisas são como são. Somos as exceções das regras.

Aqui está que era simplesmente um rapaz, pouco importando seu grau de confusão; o "rapaz" já diz tudo. Diz da viçosidade da pele dele. Diz da sua aparência consideravelmente saudável. Da pouca experiência já adquirida pelo tempo - afinal, ele é só um rapaz. E desde que citei as meninas, a confusão das meninas, e desde que neguei a regra às pessoas, bem poderia-se dizê-lo confuso. Também, própria às poucas idades que é a confusão, este traço já poderia ter sido dito pelo nome rapaz, ao lado da pele nova e da aparência saudável. Em todo caso, a ideia reforça-se na citação das meninas.

E, bem lembrado, mencionei ainda outro pontinho que grita. A questão dos ternos, outra pincelada ao vosso quadro. Pelos céus que ele não usa os ternos - e sim, deixo em aberto meu sentido, "figurado" (e entre as aspas porque sou dos que pregam que não há outra forma de sentido senão esta). Fosse como fosse, o não usar dos tais ternos deixa espaço para outro dizer: o de que, mais que o rapaz, mais que a confusão, há a diferença. O destaque em relação aos outros - aos homens. E vem a voz da inocência perguntar, não estaria esta questão já agregada à citação das meninas? É, bem que podia, e abro-me num sorriso malicioso de narrador. Mas já me acabei com o rapaz. Por agora, estou apenas a dizer as coisas.

E qual sentido? Sentido... Qual a moral? Mudar. Ou distanciar-se, como preferir quem lê. Das meninas pequenas ao rapaz sem ternos. O próximo passo é escrever dos não-confusos. Se bem que este tipo de gente...

( Juliana Gama )

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Espelho

O fim se aproximava, sorrateiro, aproximava-se sem que se pudesse percebê-lo. De visível, só a sua dúvida. A grande incerteza do fim, com seus anseios vazios, com a sua amarga calmaria. Amarga promessa de um fim que se aproxima.

- Mas que é que se pode perder quando não se tem nada? – ela pergunta, a cabeça queimando por respostas. – Não se perde o que não se tem – e mesmo assim ela temia o fim.

O frio salão funciona como um espelho para ela. Vê formar-se na tua mente uma sala ampla, uma bem refinada, dos anjos esculpidos nas paredes, dos vidros negros nas janelas, e uma menina, uma solitária menina que repousa em seu centro.

- Não posso saber – ela diz. – Não há nitidez no meu pensamento.

O salão responde num suspiro, o ar que sai levando consigo uma parte da luz.

- Pois que vejo um caminho – ela continua –, um pelo qual eu deveria seguir. Mas ele é tão, tão incerto… Não sei se quero segui-lo.

E o salão, amargo, se rebaixa em decepção.

- Mas que posso fazer? – ela pergunta. – Se me arrisco nesta estrada tão incerta, se não me arrisco, se o mais improvável dos fins é o que espero!

Mas o salão não responde. Apenas se recolhe, envergonhado pela ingenuidade da voz que ela tem. Expectativas, menina, não são leis.

- Que é que se pode perder quando não se tem nada? – ela repete. – Se me arrisco por aí, na melhor das sortes terei algo a perder quando o fim chegar.

Vai ver é mais seguro ficar por aqui. Vai ver…

E finalmente o salão se encerra, fechando-se, então, nos receios da menina. Via-se uma lágrima nos anjos das paredes, enquanto os passos daquele final incerto começavam a badalar na escuridão que havia lá fora, do outro lado das janelas escuras.

( Juliana Gama )

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Alegria, alegria

Nada profundo é o que tenho por dizer. Nada profundo mesmo.

Havia em certa esquina um pedacinho de alegria bruta. Ele vinha de uma forma confusa, completamente assimétrica, e de uns olhares soltos, uns sem definição alguma, mudando, mudando, de inconstante que era.

Pois vê que, no meio de tantos outros pedaços, uns de alegria lipidada, esta nossa alegriazinha simplesmente parava lá na sua esquina, esperando deus-sabe-o-quê de deus-sabe-quem. E as outras alegrias reajustavam-se, perfumavam-se, definiam-se cada vez mais, enquanto a nossa coisinha torta nem questionava sua pequenez. Apenas recolhia-se à sua "desforma" e se acontecia bem ali, naquela certa esquina.

E foi assim por grandes idades, até que o dia chegou. Quando os homens chegaram para escolher sua felicidade, todas as alegrias foram escolhidas, uma a uma, por seus brilhos, suas cores, suas formas bem trabalhadas, mas somente uma, a alegria bruta, que não passara por tratamento algum, fora capaz de proporcionar ao seu portador um riso que valesse por si. E é aí que é valido o chavão de que a gente tem o que a gente procura, é aí.

( Juliana Gama )

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Destino

Olhar para trás - sim, peguei-me a olhar para trás. E a mesma nostalgia, a mesma risada guardada, tudo aquilo que acontece a quem se volta às lembranças me aconteceu. Aquela cabeleira amarela pipocando pela casa com o irmão. Bons tempos, pensei, e continuei a seguir-me escada acima.

Estaria num dia como tantos outros (até porque não me lembraria de um dia específico) e arrumava sobre o piso de madeira uma verdadeira cidade com os brinquedos. Orbanizava estrategicamente cada ponto da cidade, desde o hospital até o ferro-velho, para que a história pudesse acontecer ali. Em seguida, atribuía um papel a cada boneco e punha em prática um roteiro que eu inventava na hora.

O personagem principal era "interpretado" pelo irmão, mesmo a história sendo completamente inventada por mim. Eu gostava de mexer com os outros - com os figurantes, com os parceiros e, principalmente, com os vilões. Eu mexia com todo o resto, e, desta forma, fazia com que o boneco de meu irmão escorregasse história adentro, não como se eu fosse um roteirista, mas como se eu fosse um deus.

Diferentemente de um ator, meu irmão não conhecia o roteiro; ele não tinha ideia do rumo que estava traçado (que eu tinha traçado) para a história, mas acabava, sempre e sempre, seguindo este rumo. Não gosto de terminar-me em reticências, mas dane-se. Nessas horas é que nos perguntamos do poder que temos sobre nós, da importância dos figurantes e da influência dos nossos vilões ...

( Juliana Gama )

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Bons dias!




Se lhes disser desde já, que não tenho papas na língua, não me tomem por homem despachado, que vem dizer coisas amargas aos outros. Não, senhor; não tenho papas na língua, e é para vir a tê-las que escrevo. Se as tivesse, engolia-as e estava acabado. Mas aqui está o que é: eu sou um pobre relojoeiro, que, cansado de ver que os relógios deste mundo não marcam a mesma hora, descri do ofício. A única explicação dos relógios era serem igualzinhos, sem discrepância; desde que discrepam, fica-se sem saber nada, porque tão certo pode ser o meu relógio, como o do meu barbeiro.




[...]


Foi por essas e outras que descri do ofício; e, na alternativa de ir à fava ou ser escritor, preferi o segundo alvitre; é mais fácil e vexa menos."






(MACHADO DE ASSIS, "Crônica de Bons dias!". 5 de abril de 1888)

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